“A vida é uma comédia para os ricos, um jogo para os tolos, um sonho para os sábios, uma tragédia para os pobres”.
Sholem Aleichem
A apreensão que dominava o espírito cansado do velho hazzan Izraf Davidi era demais para sua já avançada idade. Esta mesma apreensão que o guiava pelas ruas já imersas no brilho sanguíneo do alvorecer, nas primeiras horas do dia, rumo à sinagoga na qual oficiava os hinos de louvor. Precisava de iluminação, consolo, e – mais do que qualquer coisa – uma resposta. Algo que abrandasse a asfixia e descompasso de seu próprio coração naquele momento único e decisivo de sua vida. E a única companhia que desfrutava naquela sua imprevista caminhada matinal eram as sombras esquálidas e anônimas das ruas que, preguiçosamente, despertavam para mais um dia.
A iminência do décimo terceiro aniversário de seu único filho, o jovem Sariel, fruto de sua velhice e de seu amor, trazia consigo uma triste realidade: Izraf não teria condições de oferecer ao menino nada além de sua própria formação, a saber, o maestro litúrgico da sinagoga. Mas não era isso o que pai e filho desejavam para si, a vida sofrida e difícil como a que ele próprio, o maestro Izraf, levava como sua cruz pessoal, especialmente naqueles anos após os augúrios da Grande Guerra. Eram tempos negros e sem esperança não iriam ceifar o futuro brilhante que aquela criança, certamente, iria trilhar. Não, o jovem e inocente Sariel, adorado filho de sua velhice, deveria ter um futuro mais digno, mais à altura de seu próprio sangue, que ultrapassasse aquele horizonte esquálido e carmim que o saudava na distância, naquela fira manhã de outono.
O que seria impossível – daí a apreensão sufocante sobre o velho coração de Izraf – sem um mestre apropriado para tutelar o jovem. Sariel iria, por força, seguir a carreira de seu pai, e do pai de seu pai – como reza a tradição de seus antepassados – a não ser que fosse eleito um mestre tutor para o menino. Ainda que precisasse entregar a vida de sua criança nas mãos de outro homem, Izraf consolava-se no fato de que, sob mãos mais capazes, Izraf escaparia daquela vida simplista e fútil que ambos levavam desde há muito tempo. E foi justamente por isso, para sanar esta nódoa no futuro de seu próprio sangue, que o venerando Izraf seguia a passos rápidos rumo ao templo da sinagoga, para meditar e orar ao Deus de seus antepassados que enviasse alguém para lhe socorrer. Entretanto, nas primeiras horas da manhã, Adonai só responde a seus servos com a tênue iluminação do alvorecer e com os silêncios da aurora.
A orar e suplicar pôs-se Izraf, e foi isso o que fez: suplicou e orou. Na manhã fria e com arroubos de carmim, na frialdade pétrea do mármore sacramentado, no silêncio cacofônico que amortalhava o templo da sinagoga, Izraf Davidi orou e suplicou ao Santo de Israel para que poupasse a vida de seu filho daquela existência patética e sem esperança, que o jovem pudesse estender suas próprias asas em toda a sua envergadura e ganhar as distâncias do firmamento. Suplicava por livramento ao seu filho, e por uma alma sábia e capaz que garantisse tal petição ao pobre e velho Izraf. Deixou-se ali estar, e não sairia da sinagoga até que uma solução lhe fosse apresentada.
Muito orou e muito clamou o prostrado ancião, por horas e horas a fio na manhã que despertava. Fiéis vieram e se foram, enquanto Izraf permanecia em sua inconsolável súplica. Foi então que o sacerdote que ali presidia, o ancião de dias Hamal Nemmayah, respeitado por todo o conselho dos sacerdotes, olhou para a sombra que turbava a face de Izraf, e se apiedou daquele ancião sábio e fiel. Com amor em sua voz e genuína preocupação, cobrou de seu amigo a causa de tão contrita expressão em seu rosto, e indagou-lhe a causa de tamanha perturbação naquela alma querida pela Rocha de Israel.
– Meu filho está por completar o décimo terceiro ano – explicou, lamurioso – e preciso encontrar-lhe um mestre que o instrua e ampare, pois não tenho como lhe dar todas as bênçãos que merece.
O velho Nemmayah, cofiando os fios de sua alva e veneranda barba, em toda a sua sabedoria e experiência já havia compreendido os intentos por detrás do coração de Izraf. Entretanto, por se tratar de um seu grande amigo, o velho maestro Davidi, e por lhe querer com bondade e afeto, lhe disse, consolador:
– Não se exaspere, homem justo, pois o clamor de seu coração encontrou compaixão em minha alma. Traga seu filho aqui, pois eu o examinarei e testarei dentro de minha própria sabedoria. Se julgá-lo instruído nos caminhos do Santo de Israel e sábio segundo a Lei dos Profetas, eu serei o seu mestre, e ele será meu aprendiz. Comigo, ele alcançará alegria nos dias de sua velhice e instrução para suas veredas.
E, contudo, o velho maestro replicou:
– Perdoe este pobre pai zeloso, meu prezado sacerdote, mas eu recuso a sua oferta. Pois eu bem sei que o Escudo de Abraão protege o rico e expõe o pobre às ameaças desta vida, e não é isto o que desejo ao filho de meu amor. Não posso aceitá-lo como mestre de meu filho.
Assim disse Izraf, pois ainda não compreendia bem, mesmo sendo muitos os seus dias nesta terra, a suprema sabedoria e justiça do Deus Criador ao eleger ricos e pobres. Entristecido e conformado, o velho sacerdote deixou-o com suas súplicas e preocupações na ampla e silenciosa sinagoga, voltando aos seus próprios afazeres. Que os céus se apiedassem daquele pobre homem!
Muito orou e muito clamou o prostrado ancião, por horas e horas a fio na manhã que caminhava a passos dobres. Fiéis vieram e se foram, enquanto Izraf permanecia em sua inconsolável súplica. Foi então que lhe chegou próximo o venturoso Beryz Larash, famoso comerciante e homem de negócios, próspero e venturoso em seus próprios caminhos. Com verdadeira curiosidade e surpresa em sua voz foi que indagou ao velho Izraf a razão de tantas e tão desesperadas preces.
– Meu filho está por completar o décimo terceiro ano – explicou, exasperado – e preciso encontrar-lhe um mestre que o instrua e ampare, pois não tenho como lhe dar todas as bênçãos que merece.
O astuto Larash, entre um amplo sorriso de seus dentes perolados e o cofiar de sua barba gris, em toda a sua malícia e conhecimento já havia compreendido os intentos por detrás do coração de Izraf. Desta forma, por se tratar do velho e inconsolável maestro Davidi, e por ver ali excelente oportunidade para negócios, buscou acalmar o seu apreensivo interlocutor com as seguintes palavras:
– Ora, por toda a água do Grande Eufrates, meu amigo, não se preocupe mais! Aqui tem a solução de seu problema, pois eu posso garantir ao seu filho ouro em demasia e todas as alegrias desta terra! Ele se tornará um jovem próspero e pleno aos olhos deste mundo! Confie seu jovem filho à minha guarda, e ele se tornará um homem rico e bem sucedido, bem como satisfeito de todas as vontades de seu coração.
E, contudo, o velho maestro replicou:
– Perdoe este pobre pai zeloso, meu prezado comerciante, mas eu recuso a sua oferta. Pois eu bem sei que o ouro que reluz sob a Estrela da Manhã, e os prazeres que florescem neste mundo, enganam ao coração e dispersam os pés do caminho, e não é isto o que desejo ao filho de meu amor. Não posso aceitá-lo como mestre de meu filho.
Assim disse Izraf, pois não acreditava que um coração orgulhoso e um espírito fraco fossem uma promessa de felicidade e plenitude para seu amado filho. Indignado e ferido em seu orgulho, o astuto comerciante retirou-se dali para fora da sinagoga, pois perdera já em demasia o seu precioso tempo com aquele pobre velho ignorante.
Muito orou e muito clamou o prostrado ancião, por horas e horas a fio na manhã que soçobrava seus últimos suspiros. Fiéis vieram e se foram, enquanto Izraf permanecia em sua inconsolável súplica. Foi então que o mestre Ezekiah Abhadun, curandeiro errante respeitado e temido por todos da região, versado em artes e saberes há muito esquecidos, atravessou a passos largos as portas da sinagoga. O venerando guardião das chaves dos mistérios possuía o corpo fraco e deveras castigado pelo tempo, mas achegou-se a Izraf, não antes de proferir suas próprias preces e entoar seus louvores, e lhe cobrou a razão do abatimento sobre seu espírito e a tristeza sobre seu semblante.
– Meu filho está por completar o décimo terceiro ano – explicou, exasperado – e preciso encontrar-lhe um mestre que o instrua e ampare, pois não tenho como lhe dar todas as bênçãos que merece.
– Nenhum pai neste mundo ou no outro é capaz de dar ao filho todas as bênçãos que merece, pois cego e orgulhoso é o amor filial. Entretanto, caro maestro, lhe farei a seguinte oferta: aceite-me como tutor de seu filho, e ele conhecerá a fortuna e a glória, consortes que qualquer homem de valor deseja desposar nesta vida. Pois aquele que conhece os artifícios para servir à morte, como eu bem os conheço, não terá necessidade alguma nesta vida ou na outra. Tudo o que peço é a obediência irrestrita de tua criança aos meus comandos e instruções.
Respondeu então o venerando Izraf:
– Muito agradeço a sua oferta, sábio peregrino, e aceito-a de muito boa vontade. Pois a morte, a quem serves, não escolhe rico ou pobre, e não faz distinção entre homem e mulher, e a tudo iguala em sua vindima. Se esta oferta de sua parte puder ser cumprida, é isto o que desejo para meu querido e bem-amado filho. Daqui a duas luas a criança será sagrada na Lei de nossos antepassados, nesta mesma sinagoga, na hora terceira do dia. Venha sem atraso, e o destino de meu filho lhe será confiado.
O andarilho sorriu um sorriso humilde, mas verdadeiro, e agradeceu as doces palavras de Izraf para consigo. Levantou-se então de seu lugar, e partiu da sinagoga, levando consigo um hálito morno e incomum para àquela hora do dia. Ao passo que o velho e consolado Izraf desfez-se em agradecimentos e louvores para com o seu Senhor e Rei, pelo livramento que recebera e pela benção que lhe havia sido confiada. E partiu dali, já totalmente satisfeito e revigorado, para efetuar seu próprio trabalho. A vida, como é natural de ser, precisava seguir adiante.
No tempo combinado, Izraf entregou Àquele Acima de Todo o Nome, bem como ao andarilho Ezekiah Abhadun, o destino de seu tão estimado filho Sariel. Enfim a criança estava entregue, e muito feliz se encontrava o coração de Izraf, pois por intermédio dos céus pôde livrar o seu filho da triste sina que era a sua própria vida. Tudo correu como haveria de ser, e a cerimônia foi encerrada com grande celebração.
O jovem Sariel, com muito pesar e tristeza, despediu-se da casa de seu pai e prometeu-lhe honrar o nome em sua jornada. Um momento triste e de pesar para todos os presentes, mas misterioso andarilho estava impassível, apenas aguardando o momento da partida. No seu devido tempo, o mestre e seu menino seguiram jornada, e Sariel passou a acompanhá-lo por toda a sua longa peregrinação, durante a qual aprendeu o mistério das ervas, dos rituais de purificação, da leitura dos astros e da comunicação com os espíritos ancestrais.
Por muitos anos caminharam lado a lado o mestre e seu menino, nas veredas do mundo e do saber. Sariel era um jovem dedicado e inteligente, sábio e humilde a sua própria maneira. Abhadun ia lenta e certamente ensinando-lhe os mistérios já há muito esquecidos daquela terra, e o menino sorvia aquele saber como um doce mel que lhe caía aos lábios. E assim crescia o menino, então um jovem belo e vigoroso, em estatura e graça diante de Abhadun e dos homens.
E, contudo, em um determinado dia, próximos de um antigo templo abandonado, o velho Abhadun chamou Sariel para juntos ali pernoitarem, PIS a noite se aproximava e não havia nenhum outro local nas redondezas para poderem se abrigar do frio e da escuridão. No interior daquele templo, Sariel foi surpreendido por várias velas acesas, todas de diferentes tamanhos e cores, algumas mais altas e outras mais baixas, algumas mais escuras e outras mais claras – todas iluminando a densa penumbra dentro da misteriosa construção. O jovem perguntava a seu coração quem teria colocado todas aquelas velas ali, e quem o responsável por mantê-las todas acesas, uma miríade de pequenos luzeiros na nave sepulcral do templo.
Mas suas divagações foram interrompidas por seu mestre:
– Sariel, filho de minha sabedoria– começou o curandeiro, solene – agora você receberá o presente de seu mestre, que tenho reservado especialmente para esta data e lugar. O frasco que confio em suas mãos contém um poderoso remédio, que lhe tornará um médico de grande fama e renome por todas estas terras. Uma restrição, porém, eu lhe faço: a cada paciente que visitar, deverá jogar estas duas pedras. Se for escolhida a pedra branca, seu paciente receberá uma gota deste remédio, e será curado. Caso seja eleita a pedra negra, você desistirá do paciente, pois nada neste mundo poderá salvá-lo. Este é o preço final que lhe cobro por meus ensinamentos e pelo remédio milagroso que lhe entrego, e somente isto. Não ouse, porém, ir contra a vontade de seu mestre, pois eu hei de saber caso seja desobedecido nisto que lhe falo.
– Mas, mestre – indagou o jovem, confuso – Que farei eu daqui em diante? Como poderei curar as pessoas somente com este frasco e estas duas pedras?
O andarilho, entretanto, apenas sacudiu a cabeça e murmurou, sorrindo:
– Tudo o que eu já poderia ensinar-lhe, meu filho, você já aprendeu com maestria e destreza. Agora deve seguir sua própria jornada, com seus próprios pés. Lembre-se do que lhe ensinei ao longo de nossa caminhada, e da única ressalva para suas obras, que lhe fiz há pouco. E que o Senhor de seus pais olhe por você em sua jornada, meu rapaz, e os anjos das sendas celestiais iluminem seus passos.
Muito confuso e amedrontado, Sariel deixou seu velho mestre, o temível curandeiro errante Ezekiah Abhadun, a um canto daquele velho templo, a entoar um cântico desconhecido. E partiu, rumo a seu próprio destino. Ao amanhecer, já não via mais sinal de qualquer humano que tivesse passado por ali além de si próprio, e com isto Sariel enxugou as lágrimas e seguiu adiante.
Triste, de fato, e amargas são as despedidas. Mas o prosseguir é preciso.
E com o passar do tempo, o jovem Sariel se tornou um homem conhecido nas redondezas como poderoso em curas. “Em poucos instantes ele é capaz de dizer a condição de seu paciente, seja qual for, em caso de morte ou da falta dela” – assim diziam de Sariel, e de muito longe as pessoas vinham procurá-lo, e buscavam-no quando possuíam algum ente querido que precisasse de cura, e pagavam-no tão bem por seus serviços que não custou tornar-se um homem de posses e fama sem iguais naquela região. Deitou ali a sua casa, com o dinheiro de seu trabalho, e lá operava maravilhas entre os homens que o procuravam, quando de sua doença.
Certa feita, um poderoso senhor daquela região, próspero e muito rico, caiu por um terrível mal, uma doença que nenhum médico ou curandeiro saberia curar, ou teria poderes para tanto. Chamaram então a Sariel, e ele respondeu o chamado, e foi consultado sobre o sério estado daquele poderoso ancião, homem respeitado e querido entre os seus. Sariel pôs-se a traçar o diagnóstico de seu tão incomum paciente, mas ao consultar as duas pedras, foi presenteado com a pedra negra, e deveria deixar morrer ali aquele homem, segundo as instruções de seu mestre. Seu coração, entretanto, estava atento à fama e a fortuna daquele senhor, e das muitas honrarias que possuía.
“Se me fosse permitido contrariar a vontade de meu mestre, somente uma única vez”, pensou o jovem, apreensivo, “ele certamente ficará contrariado diante de tão insensata decisão”. A dúvida turbava o espírito do jovem Sariel: por um lado, a obediência e respeito devidos ao seu mestre, que propôs uma única condição diante de todas a honra e glória conquistadas pelo jovem curandeiro nos últimos anos; e, contudo, a possibilidade de recuperar a saúde àquele senhor já nos umbrais da outra vida iria render-lhe infinitamente mais do que sonhara até então conquistar. Foi então que o jovem lembrou-se do seu pai, e dos sacrifícios cometidos para que ele próprio, seu filho, não padecesse do mesmo destino.
Foi então que Sariel decidiu-se, acalmando seus temores com o seguinte pensamento: “Sendo eu o querido aprendiz de meu amado mestre, somos como pai e filho, e ele certamente me perdoará esta falta”. Convencido por esta rápida solução de suas capacidades lógicas, Sariel lançou então as pedras uma vez mais. Contudo, antes que qualquer uma lhe fosse legada por sua própria sina, elegeu a pequena pedra branca para si, e a restauração física para aquele velho homem enfermo.
Então, cedendo aos desejos de seu próprio espírito, Sariel desobedeceu à única restrição imposta pelo seu mestre, o temível curandeiro errante Ezekiah Abhadun. Subtraiu uma gota do milagroso remédio e entregou-a aos lábios de seu paciente, que agonizava sob profunda dor. E em pouco tempo, o rico senhor estava mais saudável do que nunca estivera durante toda a sua vida, melhor de corpo e espírito, recuperado de sua saúde e vigor. Pagou então a Sariel altas honrarias e grandes tesouros, como justa e merecida recompensa àquele que salvara sua vida da morte certa.
O destino, entretanto, não seria tão benigno para com a desobediência perpetrada por Sariel. Logo deixasse a casa daquele rico ancião, o venturoso rapaz foi surpreendido pelo seu velho mestre, que se encontrava sobremodo irado, e um semblante pesado e tempestuoso adornava sua fronte já enrugada e enegrecida pelo tempo. Mesmo já há tantos anos separado de seu querido aprendiz, foi com profunda ira e desgosto que o recebeu à rua, brandindo as suas calejadas mãos aos céus, enquanto gritava ao seu desobediente discípulo palavras de reprovação e justa acusação:
– Você me desonra, criança tola, com sua desobediência! Não fui eu claro em minha ordem? Não havia lhe instruído com exatidão os passos a tomar? Desta vez, contudo, eu perdoarei sua falta, pois tenho grande amor por ti e pelos seus. Ouça, entretanto, minhas palavras: se ousar responder-me com a desobediência uma segunda vez, sua própria vida lhe será tomada, pois me servirá de paga por sua insolência!
Muito assustado, Sariel agradeceu de joelhos o perdão de seu mestre, e prometeu pelo sangue de seus antepassados que não faria tal coisa novamente. Seu mestre, ainda sobremodo irado com tamanha audácia, deu valor aos votos de seu aprendiz, pois ainda lhe dispensava profundo afeto. Em parte satisfeito, temível curandeiro errante Ezekiah Abhadun então se retirou, e retomou sua própria caminhada, deixando atrás de si o assustado e envergonhado aprendiz.
Sariel, entretanto, não havia verdadeiramente se arrependido de suas faltas. Acontece que, pouco tempo depois, a filha daquele rico ancião foi tomada de uma febre sobremaneira fatal, e sua vida estava em risco terrível. Ela era a única filha daquele homem virtuoso, e ele chorava sua saúde frágil noite e dia, pois temia perdê-la para sempre. Lembrou-se então do milagre que ele próprio vivenciara, e chamou ao jovem Sariel, para que, da mesma forma que o havia regenerado com seu remédio milagroso, assim o fizesse à sua amada filha. Pois ela era a menina de seus olhos, e nada em lugar nenhum seria equivalente ao amor que por ela nutria. Como pagamento devido aos serviços do jovem curandeiro, além dos tesouros e honrarias, prometeu-lhe a mão de sua adorada criança em casamento, se fosse resgatada do fim mais do que certo.
E quando Sariel lançou as pedras, foi-lhe confiada a pedra negra, e desta forma o destino daquela jovem estava determinado. Sariel lembrou-se então da ameaça de seu mestre e da promessa que fizera de não desobedecê-lo novamente, e de como deveria prosseguir de agora em diante para com seus pacientes. Não poderia mais permitir que seu próprio desejo interviesse na sina daqueles cujas vidas lhe eram entregues.
E, contudo, ele também estava profundamente enfeitiçado pela grande beleza daquela jovem, e a alegria de tomá-la por esposa invadiu-lhe o coração de tal modo, que se esqueceu de tudo o mais. Nada mais importava para si, contanto tivesse aquela beleza celestial como sua, e suas também a riqueza, e glória, e honrarias prometidas pelo velho ancião de virtudes. Ele então lançou as pedras novamente, e elegeu para si a pedrinha branca, que lhe garantiria um tesouro ímpar e muitas alegrias nos dias futuros, bem como a salvação daquela linda dama, prostrada por terrível mal. E deu-lhe uma gota daquele medicamento milagroso, e ela ficou saudável num instante, e a febre já não mais estava nela, apenas o rubor pulsante de vida.
Sariel acertou com o velho senhor a data do casamento, bem como o pagamento por mais uma cura milagrosa naquela casa. E ao sair daquela casa, foi informado de que requeriam sua presença num velho templo abandonado nas redondezas do lugar. Surpreso e curioso com tal chamado, disposto a atender qualquer um que necessitasse de seus talentos, Sariel, dispôs-se a partir, e seguiu as instruções dadas pelo mensageiro.
Por sendas misteriosas e sombrias Sariel caminhou, sob os últimos raios do sol, que aos poucos se despedia de mais um dia. E, qual não foi sua surpresa, ao encontrar-se no ponto indicado pelo súbito mensageiro, Sariel descobriu tratar-se do mesmo templo abandonado no qual havia recebido de seu mestre a dispensa de sua tutela e o milagroso medicamento. Lá, dentro da nave fria da construção desde há muito abandonada, em meio a todas aquelas velas de tamanhos e cores várias, estava o velho andarilho curandeiro Ezekiah Abhadun, que caminhou em sua direção a passos largos e pesados, e gritou, num assomo de fúria, enquanto o arrastava para o interior do templo, segurando firme as vestes de Sariel, com suas mãos sufocando-o terrivelmente:
– Você lançou sua própria sorte, e agora está tudo acabado! Vê estas velas? Elas são as vidas dos homens, e este templo é o meu santuário! As velas mais compridas pertencem às crianças, as medianas pertencem aos moços e jovens, e as mais curtas pertencem aos anciãos e anciãs desta terra. A todo instante muitas podem extinguir-se, e outras recobrar a sua chama. As velas se vão e vêm de meus domínios. É meu o fardo de garantir que este equilíbrio não seja perturbado, e você por duas vezes assim o fez!
Sariel, por sua vez, estava por demais maravilhado com aquilo tudo, e pouca atenção dava às palavras de seu irado mestre. Indagou-lhe apenas, os olhos reluzentes como as chamas das velas, a fim de satisfazer a grande curiosidade que lhe oprimia:
– Mestre, qual destas é a vela que representa minha vida?
E Abhadun, ainda profundamente irritado com o jovem, apontou-lhe uma vela escondida a um canto do templo. Sariel cria se tratar de uma vela alta e viçosa, sua chama de uma intensidade sem igual entre as demais. Qual não foi sua surpresa ao descobrir um toco deveras pequeno e trêmulo, quase a extinguir-se. Profundamente amargurado com aquela descoberta, suplicou com uma voz entrecortada de soluços:
– Ah, meu mestre, pai de minha sabedoria, acenda-me uma nova vela, para que eu possa gozar de meu casamento e minhas honrarias! Permita-me a fortuna e a glória que me foram destinadas, quando me tomaste por discípulo! Eu lhe imploro!
– Tal eu não posso – rebateu o velho curandeiro – pois a chama precisa se extinguir antes que uma nova possa lampejar. Não posso atender ao seu pedido.
– Então, meu mestre, eu lhe suplico: acenda-me uma nova vela para meus dias quando esta se apagar. Permita-me saborear um pouco mais esta vida que me pertence!
Então, Ezekiah Abhadun, em toda a sua sabedoria e perspicácia, tomou em suas mãos finas e esqueléticas uma nova vela, roliça e viçosa como nenhuma outra por ali se via. No instante fatal, porém, que a vela dos dias de seu aprendiz estava prestes a se esvair por completo, deixou a nova vela cair e rolar no chão, juntamente com o corpo de seu aprendiz, já totalmente desprovido de vida.
– Tolo – murmurou o velho andarilho curandeiro, com a sombra de um sorriso por detrás da alva e veneranda barba – Acreditou até o último minuto que poderia dobrar a mim, as asas da morte, o ceifeiro de almas? Realmente creu que iria contra a minha palavra, e dobraria meu jugo, imposto a você, meu menino, uma segunda ou terceira vez? Seu espírito dobre e fraco deixou-se dobrar diante da altivez do dinheiro, e tornou-se apenas um brinquedo nas mãos de forças mais poderosas que você próprio, triste sonhador de uma realidade impossível! Respondeu à minha dádiva com a desobediência, da mesma forma que respondo sua súplica com o escárnio. Saiba que homem ou mulher, rico ou pobre, enfermo ou são – todos são iguais aos olhos da morte.
E, partindo daquele velho templo abandonado, a morte retomou a sua peregrinação, em busca de outra alma que lhe fosse obediente e servil no difícil trabalho que era a vindima diária do espírito efêmero, que é a vida.
Verdadeiramente, enganoso é o coração dos mortais.